“Não é que os conhecimentos especializados não sirvam, mas que eles deixam buracos na sua visão de mundo”

“Specialized knowledge is not useless, but it leaves gaps in your worldview”

DOI10.22430/21457778.2609


 

Resumo

Foi pela vivência de pesquisa no exterior que Ivan da Costa Marques tomou consciência da dependência tecnológica do Brasil. Foi na pesquisa no Brasil que ele vivenciou a reserva do mercado de minicomputadores como uma linha de fuga da dependência tecnológica, o que para ele seria, para o Brasil, uma aproximação autônoma da modernidade. Foi refletindo sobre como o sucesso dessa linha de fuga se transformou em fracasso que da Costa Marques se deu conta de que as explicações disciplinares, fossem da engenharia, da economia ou mesmo da sociologia, tinham sempre hipóteses e opções implícitas de valores que tendiam a reforçar o modo de ver dos países ditos desenvolvidos. Depois, continuando a estudar e pesquisar sobre as limitações dessa linha de fuga, chegou aos Estudos de ciência, tecnologia e sociedade e situou os Estudos de ciência, tecnologia e sociedade como uma poderosa ferramenta daqueles que estão engajados na superação da colonialidade nas periferias do Ocidente.

Palavras-chave: colonialidade, dependência tecnológica, Estudos CTS, Ivan da Costa Marques, linha de fuga, reserva de mercado.

Abstract

Ivan da Costa Marques became aware of Brazil's technological dependence through research experience abroad. And through research within the country, based on an autonomous approach to modernity for Brazil, he discovered that the reserves of the minicomputer market could be a vanishing point from technological dependence. With his reflection on how the success of this escape line became a failure, Costa Marques realized that disciplinary explanations from engineering, economics, or even sociology, always had implicit assumptions and value choices that reinforced the view of the so-called developed countries. Thus, the study of the limitations of this vanishing point led to Science, Technology and Society Studies that situated them as a powerful tool for overcoming coloniality in the peripheries of the West.

Keywords: Coloniality, technological dependency, STS studies, Ivan da Costa Marques, vanishing point, market reserve.

 

ENTREVISTA

AALF/HC     O primeiro ponto seria muito ligado à sua trajetória pessoal, sua carreira e a relação com o campo CTS. Falando do seu percurso intelectual, o que que foi relevante nesse encontro? Quais foram as experiências que te atraíram mais diretamente para o campo CTS? E como é que ele estrutura, vamos dizer assim, a sua carreira dentro dessa área. E também falar da sua perspectiva o que da sua carreira você considera importante para constituição desse próprio campo CTS.

IdCM     Essa questão de como é que eu cheguei no campo CTS tem uma resposta bastante longa, até porque eu demorei muito tempo para chegar no campo CTS. Eu tive uma educação em um colégio católico no Rio de Janeiro. Depois fui para o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), que é uma escola de engenharia em São José dos Campos, e me formei como engenheiro eletrônico em 1967. O ITA tem um viés de forte cientificidade no ensino da engenharia. Um ano e meio depois, dois anos depois, eu fui fazer o mestrado e doutorado na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e isso aí foi uma experiência enorme porque é muito diferente da universidade brasileira. Eu tive contato com uma visão, muitas visões, na verdade, mas o que interessa para nós aqui foi a questão da diferença de visão da tecnologia, da maneira de se relacionar com a tecnologia. E uma consciência de que essa diferença influenciava muito a vida no Brasil. Quer dizer, uma maneira de entender essa diferença que eu fui chamando de dependência tecnológica. É um pouco irônico, mas foi quando eu fui para o exterior que eu tomei consciência de que o Brasil é um país dependente tecnologicamente.

Eu fiquei quatro anos em Berkeley, mas mesmo lá eu levei tempo para perceber isso que vim a sentir como dependência tecnológica. Levou tempo para eu enxergar, ou melhor, para eu ter uma visão mesmo que imprecisa que ligasse o que eu presenciava lá e o Brasil. No começo eu fiquei muito fechado dentro das disciplinas que eram necessárias dominar para poder fazer os exames preliminares. Nessa fase o estudante só tem duas chances de passar numa prova em que metade é reprovada. Então foi do terceiro pro quarto ano que eu percebi melhor o que era que eu queria fazer: contribuir para superar a dependência tecnológica do Brasil. Quer dizer, eu comecei a tomar isso – sem querer exagerar ou mitificar – como uma missão, uma espécie de missão. Olha, em Berkeley eu tomei contato com um jeito dos americanos vivenciarem a tecnologia, uma intimidade, uma abertura mais ousada, uma coisa que sabem que é deles, que eles fazem, e acho que isso me inspirou, achei que poderia contribuir com o meu país, e aí eu voltei pro Brasil. Logo escrevi o artigo “Computação na UFRJ: uma perspectiva”. 1

AALF/HC     Eu ia te perguntar, assim, antes de você voltar pro Brasil, quando você estava na Califórnia primeiro. Eu suspeito que você ficou lá de 1970, ‘74.

IdCM     ‘69 a ‘73.

AALF/HC     Então você chegou na Califórnia no auge da contra, dos movimentos de contracultura, do flower power, do movimento hippie, de toda essa movimentação que se você olhar do ponto de vista da história da informática norte-americana, são movimentos que estão ligados à construção do computador pessoal, então eram movimentos libertários em busca de uma perspectiva também libertária dentro da tecnologia. Não estou querendo fazer um determinismo, mas há conexões e eu queria saber se essas conexões e ligações suas com aquela atmosfera contra cultural também contribuíram para essa percepção de dependência tecnológica, mas principalmente pelas possibilidades que se abriam naquele momento pra você pensar uma produção tecnológica de artefatos computacionais de forma local. Enfim, como esse panorama cultural e o estado da arte e da tecnologia teve alguma interferência nessa tua missão? O que isso mobilizou em você? Eu acho que essa tua missão era “o que eu estou vendo aqui indica que podemos fazer isso no Brasil”.

IdCM     Naquela época, você lembrou bem, ‘69, foi logo depois do episódio do People’s Parc, em que você teve helicópteros gaseando os estudantes. Eu mesmo cheguei uma ou duas vezes a fugir no campus para entrar dentro de prédios porque a polícia estava jogando gás lacrimogéneo nos estudantes. Era um ambiente muito fértil intelectualmente e muito contestatório, e isso contaminava também os professores. Os professores também de cabelo comprido. Era relacionado à questão que você mencionou de sexo, rock e drogas. Berkeley tinha uma fama assim, é claro que isso é um grande exagero quando se reduz o ambiente a isso, porque ao mesmo tempo tinha aquela rigidez ortodoxa que eu falei dos exames preliminares. Aquilo não ganhou nenhuma flexibilidade maior em função de uma visão da vida que poderia ser associada a ‘68 e àquela época tanto na Europa quanto nos Estados Unidos.

O que eu acho que me chamava muita atenção era que o conhecimento que era feito nas universidades era assim, ele visava, quase que ele já vinha integrado. Por exemplo, o meu orientador, que era o Manuel Blum, era um teórico da computação e estudava complexidade matemática e computabilidade, ele trabalhava com números. Depois, ele foi muito premiado porque os números que ele trabalhava, os códigos que ele trabalhava, foram insumos para esses códigos, esses números que hoje vemos nos cartões de crédito. Então era uma coisa assim, o Blum estuda meta-matemática, estuda lógica, ele estuda computabilidade. Mas o trabalho dele, que poderia ser visto como uma coisa extremamente teórica, desaguou numa coisa extremamente prática que a gente vê todos os dias. Eu via que era um conhecimento pra fazer mundo. Visava fazer as coisas e isso aí, eu acho, que me impressionou mais. Mais, inclusive, do que o movimento cultural mais geral que tinha lá em Berkeley. Então eu voltei com essa ideia, de fazer Brasil.

Depois de três anos em Berkeley eu vim de férias ao Brasil e fiquei na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pra mim, aconteceu aí uma coisa também inesperada, porque quando eu saí, eu saí do Departamento de Cálculo Científico da COPPE, que era uma unidade que tinha sete pessoas, e três anos depois aquilo tinha se transformado no NCE que tinha 90 pessoas que eu não conhecia.

AALF/HC     Desculpe, acho bom a gente esclarecer, a COPPE é a Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem um nome mais completo, que é Instituto Alberto Luiz Coimbra, que é uma referência ao fundador da COPPE e de pós-graduação em engenharia. E o NCE é o Núcleo de Computação Eletrônica, que era uma entidade na época autônoma; não estava ligado à COPPE. Só esclarecendo isso aí pra que as pessoas possam saber o que você tá falando.

IdCM     Sim, isso é pertinente. O NCE se separou da COPPE no começo dos anos 1970 e se tornou uma unidade da UFRJ. Aí, quando eu voltei, tinham 90 pessoas, e eu tinha aquela ideia de que se poderia fazer coisas no Brasil, mas eu não tinha certeza. Conversando com o pessoal que eu encontrei, também me surpreendeu a capacidade que eles tinham de fazer realizações técnicas. Éramos todos jovens, mas eles ainda mais jovens do que eu. Eu procurava coisas que tornassem o trabalho universitário integrado como eu havia percebido o trabalho em Berkeley, mas integrado no Brasil, e eles me ajudavam e encontrar os limites do que conseguiríamos. Assim, juntos nós procuramos o que desenvolver que fizesse sentido nessa questão do desenvolvimento local de tecnologia. Eu tive a ideia de fazer um Processador de Ponto Flutuante para o computador IBM1130 e eles me deram a confiança de que isso era um objetivo alcançável. Tentando ser rápido, o processador de ponto flutuante é uma unidade eletrônica que faz o computador IBM1130 fazer por hardware operações com os números de ponto flutuante (como se chamam os números fracionários no jargão da ciência da computação) antes feitas por software. O computador era um computador da IBM, mas a IBM não participou, não ajudou no projeto. Mas ela não foi efetivamente contra o projeto. Ela fez uma exigência que eu acho que fez sentido: a IBM faz a manutenção do computador, então quando nosso técnico chegar aí, argumentou a IBM, ele tem que receber o computador íntegro. Traduzindo, eles exigiram que esse processador, esse hardware, fosse integrado ao hardware do processador IBM através de um plug. É como se fosse uma tomada, você liga a tomada e aí o hardware do processador de ponto flutuante passa a assumir aquelas operações e é claro que isso tinha que ter uma modificação de software também no sistema IBM. Essa modificação de software também tinha que ser desligada quando vinha o pessoal da IBM fazer a manutenção. Tínhamos consciência de que fazer isso era ir até as entranhas da engenharia eletrônica de computação e do software básico de um sistema operacional de uma companhia líder. Eu costumava dizer “olha, se a gente conseguir fazer isso, a gente consegue fazer qualquer coisa em eletrônica”. Conseguimos em um ano e meio. Não esqueço o dia em que o primeiro protótipo funcionou: 6 de fevereiro de 1974. Foi o dia em que nasceu meu primeiro filho, João. É como se fossem dois filhos.

AALF/HC     Só nomeia a equipe, se você se lembra, porque eu acho legal a gente registrar.

IdCM     Sim, sim. Nesse projeto, os principais eram a trinca Eber Smitz, Newton Faller e Pedro Salenbauch. O Newton infelizmente já faleceu. O NCE contava com uma equipe de engenheiros e estudantes excepcionalmente brilhantes. O Eber está no núcleo até hoje, e o Pedro também, aposentado. Além deles, salvo engano, ainda estão no NCE, o Diogo Takano e o Mário Martins. Escrevi na época um artigo que toda a equipe assinou.2 Acho que se eu não tivesse tido a oportunidade de formar aquela equipe, e especialmente encontrado o Eber, o Newton e o Pedro, eu não sei se eu teria a coragem que eu passei a ter depois que eu vi aquilo funcionando. Aquilo me deu uma coragem muito grande de dizer: “nossa! nós podemos!”.

Eu era um cara que tava chegando de Berkeley com PhD, o que dava um prestígio muito maior do que hoje em dia. Existiam muito poucos PhDs. Várias vezes nos anos seguintes, quando eu comecei a interagir com empresários, eles diziam “nossa, eu esperava uma pessoa muito mais velha”. Era como se eu fosse um general com cinco estrelas. E era a ditadura ... a gente vai falar disso depois se der tempo. Isso me concedia uma “autoridade técnica” e um prestígio junto àquele coletivo (de professores, empresários e funcionários públicos), e eu sempre procurava ver o que poderia dar certo. Então eu pensei, não pode ser uma coisa que comece tentando avançar uma fronteira especializada do que vi nos EUA. Eu lembrava de umas histórias que corriam no ITA que os primeiros idealizadores de uma indústria nacional de aeronáutica achavam que ela tinha que começar com um avião de pouso vertical que ninguém tinha feito. Eu tinha consciência de que não dava pra ser assim. Tínhamos que começar a comer o mingau pelas beiradas e fazer uma coisa de complexidade crescente. Só que um processador de ponto flutuante (PPF) para um computador IBM era uma coisa bastante complexa, não era nenhuma trivialidade. Mas muitos colegas na academia consideravam que isso não era “pesquisa de ponta”, não era pesquisa básica. Para mim, fazer funcionar o PPF era como se fosse uma demonstração de nossa capacidade tecnológica. Cabe observar que então eu não tinha a consciência que eu vim a ter depois de que quando você tem um protótipo você não tem um produto industrial. Eu supervalorizava o protótipo ou as ideias, um pecado talvez cometido pela maior parte dos professores. Fazer o protótipo funcionar significava fazer “a coisa”.

No caso do PPF para o IBM-1130, quando conseguimos fazer o protótipo funcionar, quando aquela teia de aranha de fios e circuitos mais o software fez o que era para ela fazer, isso me deu uma força enorme para propor um salto. Em suma, a partir daí eu fiquei com muita coragem de defender um processo que diminuísse a dependência tecnológica do Brasil. Eu carregava esse entusiasmo, essa utopia, é verdade. Mas principalmente eu tive também a sorte de encontrar companheiros que compartilhavam essa preocupação e foram muito facilmente contaminados por um entusiasmo desse tipo, como Arthur Pereira Nunes, Ricardo Saur, Mário Ripper, Jorge Monteiro Fernandes, Moacyr Fioravante e outros. (Já peço desculpas aqui para os que estou esquecendo de mencionar.) Não eram professores. A gente está falando da burocracia. E era a ditadura, mas a ditadura não era um bloco monolítico; ao mesmo tempo que ela perseguiu muito as ciências sociais ela investiu na pós-graduação das engenharias. Quer dizer, havia aliados que conseguiam financiamento para o NCE e outras universidades e, como eu disse, a ditadura não era um bloco monolítico. Os militares apoiaram as engenharias porque havia um espaço criado por uma ideologia de “Brasil Potência”, enganada e enganosa que fosse essa ideologia. Essa proposta de maior “autonomia tecnológica” agradava pelo menos uma parte dos militares. Então aquelas pessoas que vinham do exterior com doutorado em tecnologia, jovens, nós tínhamos esse tipo de facilidade.

Quer dizer, a gente falava com a ditadura e a ditadura pelo menos escutava, era uma espécie de oásis relativamente democrático dentro da ditadura. E alguns desse tipo de jovens técnicos tinham entrada ou mesmo presença nos órgãos governamentais. Podia-se falar algumas coisas, mas não tudo e nem todos. Em São Paulo, no Rio Grande do Sul, em Minas Gerias, havia pessoas entusiasmadas com a proposta de superar a dependência tecnológica, e isso não só nas universidades, mas também nos centros de processamento de dados dos estados. A PRODESP (Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo), em São Paulo; a PROCERGS (Centro de Tecnologia da Informação e Comunicação do Estado do Rio Grande do Sul), no Rio Grande do Sul; a PRODEMGE (Companhia de Tecnologia da Informação do Estado de Minas Gerais), em Minas Gerais. Eram estados que tinham recursos suficientes para instalar seus próprios centros de processamento de dados e comprar computadores. E quem administrava esses computadores? Muitas vezes esses jovens técnicos que eram também mais facilmente contaminados por uma proposta de maior autonomia tecnológica no setor. E as evidências de viabilidade técnica da proposta começavam a crescer. As universidades começaram a pegar terminais de vídeo da Burroughs e ligar a um computador da IBM. O SERPRO desenvolveu um sistema de entrada de dados que usava só teclados ligados à um minicomputador central, dispensando um equipamento IBM com vídeo, muitíssimo mais caro. E isso aí foi dando confiança, criando e ampliando um grupo de “técnicos” muito interessadas em incentivar uma indústria genuinamente nacional de computação, ou melhor, uma indústria com tecnologia nacional de computação. Bem, eu não cheguei ainda no CTS, mas prometo que vou chegar lá.

AALF/HC     Mas é bom, porque é difícil, né? É um encontro que vem depois... como você falou, demorou um tempo até você chegar nesse encontro. É bom a gente acompanhar junto contigo. Acho que ajuda a entender esse encontro mais adiante.

IdCM     Tinha esse ambiente, um grupo meio que falando (a ditadura exigia prudência no que se falava) de dependência tecnológica, falando que tinha que fortalecer a engenharia no Brasil e aconteceu uma coisa que ajudou muito, que foi a chamada crise do petróleo. Citar números de memória é sempre perigoso, mas que eu me lembre, o barril do petróleo custava, numa certa hora do começo da década de ‘70, dois dólares ou dois dólares e meio e de uma sexta-feira para segunda-feira, o barril passou a custar doze dólares. Foi o terremoto que deu origem aos chamados petrodólares. O Brasil não tinha mais divisas para nada e tinha que economizar muito qualquer divisa. Então o governo estabeleceu prioridades e as importações foram submetidas a novos controles. As importações mais controladas eram as dos setores de equipamentos de comunicações, computadores e aeronaves. E o órgão que foi incumbido de controlar a importação dos computadores foi justamente a CAPRE, que era um órgão pequeno da Secretaria de Planejamento, mas que tinha pessoal qualificado.3 Esse órgão, mesmo pequeno, foi encarregado pelo governo ditatorial a controlar a importação de computadores. Os dólares precisavam ser economizados ao máximo, usados com o maior cuidado possível e a CAPRE foi encarregada de fazer isso. E aí, resumindo a história, foi feita a Resolução 01 da CAPRE que dava maior prioridade para peças de manutenção dos computadores e para peças para fabricação dos computadores que eram exportados. A partir dessa resolução, qualquer operação industrial tinha que solicitar previamente as guias de importação para fazer as importações dos componentes e como não se conseguia fabricar um computador sem importar componentes, qualquer operação industrial passou a depender da aprovação da CAPRE. E foi então que a CAPRE fez uma resolução direcionada para o que veio ser a reserva do mercado de minicomputadores. É interessante ver que esta resolução demonstra uma precaução porque em vez de dizer que era obrigatório fazer o projeto de minicomputadores no Brasil, ela dizia que isso seria prioritário. Ela daria uma prioridade a isso. A IBM desafiou e reagiu muito fortemente à resolução da CAPRE. Inclusive, na minha opinião, ela errou, pois ela usou guias de importação aprovadas para os computadores de grande porte que ela fabricava no Brasil para importar peças para fabricar no Brasil o IBM∕32, que era um minicomputador. E essa, por assim dizer, contravenção, na minha opinião, fragilizou a IBM junto ao governo. Ela chegou a fabricar os IBM∕32 mas foi obrigada a exportar as máquinas que fabricou pois foi proibida de vender. Isso aconteceu e dizia-se na época que a IBM havia vendido cerca de 300 unidades para uma demanda identificada de 600/800 unidades e que ela estava fabricando para entregar, criando assim um fato consumado. Instalou-se uma situação de muita tensão lá na CAPRE. O então ditador, General Ernesto Geisel, recebeu o board da IBM em Brasília, a IBM fez toda a força, mas não conseguiu a licença para vender as máquinas no Brasil. A situação foi decidida muitos meses depois por um conselho de ministros que eram responsáveis pela CAPRE (o Ricardo Saur era o secretário executivo). Esse conselho decidiu que fosse feita uma concorrência internacional entre empresas candidatas a fabricar minicomputadores no Brasil. A empresa fabricante estatal Cobra já estava aprovada. Foram três as empresas selecionadas por essa concorrência, Edisa, Labo e Sid. Depois foi ainda aprovada uma quinta empresa, Sisco, com um argumento irônico, mas que valeu. Esta empresa emulava computadores da Data General que não tinha patentes no Brasil. Argumentou que já atendia à Resolução 01 e alegou por isso ter direito de entrar na reserva de mercado. Em suma, assim consolidou-se essa reserva de mercado, é bom frisar, para minicomputadores, que foi realmente um sucesso.

Isso aí aconteceu em ‘77, essa concorrência. Quando você olha os dados de ‘84, você tinha um parque industrial de minicomputadores de empresas brasileiras que, talvez surpreendentemente, tinham honrado os contratos iniciais de compra de tecnologia, de projetos, e de evoluir esses projetos e atualizar as máquinas já com os engenheiros brasileiros. É algo hoje muito pouco reconhecido, mas que foi uma coisa que deu totalmente certo técnica e economicamente. E por que que não continuou? Isso é importante para nossa finalidade aqui de chegar aos Estudos CTS. É importante aqui na entrevista porque eu sofri ao longo da década de ‘80 com essa questão. Eu comecei a ver mais claramente, mas sem uma ferramenta para entender, que todo aquele desenvolvimento ia por água abaixo por diversos motivos. Em 1980 houve uma intervenção do SNI (Serviço Nacional de Informações) na CAPRE e o governo perdeu uma importante capacidade de interação com as universidades, e no começo da década de ’80 o microcomputador causou uma mudança muito radical na indústria de computadores. O microcomputador exigia que a indústria fosse reconstruída, mas as condições para fazer isso não mais existiam. Surgiram muitos outros. digamos assim, aventureiros de outra espécie, tanto militares quanto civis, estes já ligados à então nova indústria de micro (e não mini) computador, onde, por exemplo, é muito mais fácil fazer contrabando. Mais do que isso, pode-se falar de um abandono gradativo da ideia de projetar computadores no Brasil e uma série de, digamos, “corrupções” que não aconteciam até ’80-‘82 naquelas empresas que tinham entrado na reserva do mercado e tinham cumprido aqueles contratos com a CAPRE. Digamos que essas “corrupções” foram se espalhando ao longo da década de ‘80.

Para chegar aos Estudos CTS eu tive que viver essa década de ‘80. De 1980 a 1986 eu dirigi a Embracomp ∕ EBC, uma pequena empresa privada que fabricava equipamentos de entrada de dados, terminais de vídeo e multiplexadores de linhas telefônicas aqui no Rio de Janeiro. Chegamos a fabricar microcomputadores, o IBM PC, pois era impossível sobreviver sem fazer isso. A história da interação dessa empresa com a universidade, em especial com o NCE, ainda não foi contada, mas entrar nisso aqui nos desviaria ainda mais dos propósitos dessa entrevista. Em julho de 1986, já no governo civil, eu aceitei o convite do ministro Renato Acher, para dirigir a COBRA, a fabricante estatal de minicomputadores. Lá, até 1990, eu vivi as batalhas finais em que a gente entrava, mas já sabia que o projeto de ter uma indústria de computadores com tecnologia nacional estava perdido. Lá eu vivi e experimentei toda a dificuldade e a decepção de ver que mesmo algumas das empresas antes engajadas no projeto de tecnologia brasileira começaram a fazer novos contratos com fornecedores, passando a usar as marcas estrangeiras para ter prestígio.

Foi na década de ’80 que eu fiquei talvez mais perplexo. Eu senti certas coisas, né? Eu senti algumas coisas e outras coisas eu vi. Não foi só sentir. Eu vi outro grupo de militares interferir no processo, e eram militares oportunistas que não tinham compromisso com o projeto de tecnologia nacional. Eram burocratas oportunistas. Eu não vou conseguir contar essa história de uma forma totalmente coerente, teria que juntar muitos pedaços. Mas ao mesmo tempo que a CAPRE tinha um certo acesso à ditadura, circulava também ideia de que a CAPRE era um antro de esquerdistas. Peter Evans, um sociólogo americano, descreve bem isso no livro sobre a reserva de mercado.4

Em 1980 o general João Baptista Figueiredo foi escolhido pelo alto comando militar para ser o ditador (dito “presidente”) do Brasil. Um grupo de militares do Serviço Nacional de Informações, um órgão de policiamento ideológico da ditadura até então comandado por Figueiredo, ambicionou os cargos e posições da CAPRE que se destacavam cada vez mais. Íntimos do novo ditador, eles intervieram no setor da indústria de computadores criando uma comissão de investigação, comissão Cotrim, que concluiu que a CAPRE era um órgão muito fraco para tratar de um problema tão grande como o problema da tecnologia da informática no Brasil. Concluíram que se precisava de um órgão mais forte. E criaram, foi proposto e foi criado na mesma hora, a Secretaria Especial de Informática (SEI). Assim, em 1980, a CAPRE foi extinta e a SEI foi criada. A SEI tinha nível de ministério, isto é, com muitos cargos, secretárias, motoristas etc. E os militares da comissão Cotrim se nomearam para essas posições aí. A ironia é que eles se apresentaram como nacionalistas e aproveitaram sem modificação os procedimentos que a CAPRE tinha instituído para minicomputadores. Isso fez com que, nos primeiros momentos. inclusive nas universidades, algumas pessoas achassem que “olha, agora estamos aonde tínhamos que chegar. Estamos na cúpula do governo para decidir as coisas”. Só que não éramos “nós”, os acadêmicos e técnicos frustrados e sim “eles”, os militares oportunistas, e isso adiante ficou claro. “Eles”, eu acho, eram totalmente oportunistas, viram ali a possibilidade de ocupar cargos e o mais fácil para eles era continuar o que a CAPRE estava fazendo, que havia dado certo. Só que surgiu o microcomputador e eles não sabiam o que fazer diante do micro. E não era uma coisa trivial. Tanto que a indústria de minicomputadores acabou no mundo inteiro e não só no Brasil. O que não quer dizer que a gente teria necessariamente fracassado no processo de fazer tecnologia brasileira porque surgiu o micro, embora se estivesse diante de um novo desafio. Quando a Lei de Informática foi aprovada em 1984 o projeto de fazer uma informática com maior participação da engenharia brasileira já havia sido completamente corrompido.

E quando chegou ‘90 veio o governo do Fernando Collor de Mello, que só, vamos dizer assim, formalizou um sentimento que já havia se disseminado. Assim como ele chamou os carros brasileiros de carroça, os brasileiros de classe média / classe média alta, que queriam comprar computadores para o seu uso pessoal ficavam indignados de ter que comprar um computador brasileiro. Isso eu vivi até com amigos meus. “Eu sou obrigado a usar isso aqui que não é atualizado?”. Os argumentos valem conforme a situação, né? Eles não se importavam de pagar o dobro por um micro-ondas que não é atualizado, mas que é vendido pela Eletrolux. Mas eles se importavam muito de comprar um micro que não era tão atualizado quanto o que eles tinham visto na última viagem aos EUA e ficavam irados com isso. Quando a política acabou, ela era realmente rejeitada.

AALF/HC     Eu acho importante também acrescentar, Ivan, que ela era rejeitada pela mídia conservadora hegemônica, né? Os principais jornais e as principais informações na mão de poucas famílias exerciam uma grande pressão pelo fim da reserva, de que o Brasil estava ficando atrasado. Essa foi uma posição que transitou ao longo de décadas. Até agora você lê na grande mídia acusações ao atraso tecnológico do Brasil por conta de uma reserva de décadas antes.

IdCM     Sim, sem dúvida, até hoje. Esse ano eu li coisas assim, futilezas desse tipo. “... o atraso da reserva ... pagando o preço do atraso da reserva ... ainda estamos pagando o preço do atraso da reserva...”. A imprensa fazia a campanha pela privatização e isso tinha consequências para todos que tinham ambições na democracia em formação. Houve um episódio de tentativa de privatização da COBRA a toque de caixa. E, ironicamente, eu consegui impedir isso usando o SNI, o órgão dos militares novamente. A COBRA não foi privatizada como queria o Márcio Fortes. Ele era um privatista radical, presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), foi deputado, foi meu colega no colégio Santo Inácio, e tinha alto interesse em privatizar a COBRA pondo em prática um modelo de privatização que ele poderia capitalizar para a campanha dele. Era um interesse político muito grande, sem nenhuma atenção à tecnologia, que privatizaria quase dando a COBRA. Era um processo vergonhoso de privatização, sem nenhum respeito pelo SOX, um sistema operacional tipo UNIX que a COBRA tinha desenvolvido. Em uma escala muitas vezes maior, o SOX era que nem o PPF do NCE, uma façanha tecnológica super enaltecedora e demonstrativa do que se pode fazer no Brasil. O modelo de privatização do BNDES dava um valor zero para aquilo. E aí eu procurei um amigo militar (infelizmente falecido), Jorge Monteiro Fernandes, que fez um contato e eu consegui falar com o general Ivan de Souza Mendes, do SNI. Contei a história pra ele e ao final ele disse “o que o senhor quer?”, e eu disse “eu quero que pare esse processo de privatização da COBRA”. Falei com ele de manhã em Brasília, peguei o avião pro Rio na hora do almoço, e quando eu cheguei aqui de tarde o processo tinha parado. Ele telefonou pro Márcio e o Márcio ficou passado. Ele simplesmente falou “Para isso”. É interessante porque já era o final do governo Sarney e os militares ainda mandavam. Márcio, ultra contrariado, mas com aquele juízo de quem obedece, disse à equipe do BNDES que “Informática é nitroglicerina pura”. Ele falou isso e, é claro, ficou muito zangado comigo. A gente já se encontrou depois disso, mas a sequela ficou. Nunca mais ... foi um episódio muito marcante.

Para mim a situação a que havia chegado a proposta de maior autonomia era algo que eu não sabia explicar... eu comecei então a ler coisas fora da Engenharia e da Administração. Comecei a ler coisas de Economia e de Sociologia sem ter nenhum contato anterior com isso. E Filosofia. Era o governo Collor e eu ia sair da COBRA.

Minha ideia então era voltar em tempo integral para a UFRJ. Mas eu tinha um colega na UFRJ, José Ricardo Tauile, que havia feito o doutorado na New School for Social Reserach, uma universidade voltada para as ciências sociais que ele pensou ser um lugar adequado para eu ir com as minhas questões sobre desenvolver tecnologia no Brasil. Aproveitando uma passagem por Nova York fui lá. A secretária perguntou se eu queria fazer um doutorado e eu disse que não. Ela mesma disse que eles não tinham pós-doutorado, mas que podia me conduzir ao pró-reitor de pós-graduação, Professor Bates. Conversei uma hora com ele e contei mais ou menos a história que acabei de relatar para vocês. Ele me pediu para escrever um projeto que ele encaminharia com simpatia ao colegiado. Voltei pro Brasil, mandei o projeto e em dois, três meses, talvez até menos, recebi uma carta-convite para integrar-me no Committee of Historical Studies como visiting scholar. Ofereciam uma sala, computador, acesso às bibliotecas da New School e da New York University (NYU) e uma ajuda com o seguro saúde, pois havia dito que iria com meus dois filhos. Minha obrigação para com a New School era somente frequentar e participar de seminários. Eu tinha completa liberdade para me dedicar ao meu próprio projeto, mas eles não me pagariam um salário. Pedi então uma bolsa de pós-doutorado ao CNPQ, e fui para a New School em setembro de 1990. Retornei em agosto de 1992.

Depois de alguns meses lá eu encontrei esse livro de título audacioso, A construção social de sistemas tecnológicos: novas direções na sociologia e na história da tecnologia, editado pela MIT Press.5 Nele me chamou especialmente atenção um artigo do John Law sobre a expansão portuguesa porque tem essa abordagem que procura mostrar que muitas coisas entram na questão da tecnologia e da ciência. Se você ler a Engenharia, a Economia e a Sociologia você vai enxergar as coisas compartimentalizadas e alguma coisa fica fora a priori, cai entre esses conhecimentos disciplinares, o que reduz o seu entendimento. Então se você – já entrando um pouco nos Estudos CTS — é um economista, você vai ter um discurso e vai entender o mundo a partir de uma redução. E a mesma coisa para a Sociologia. Então as disciplinas apresentam essa questão de que se você tem muitos conhecimentos especializados, não é que os conhecimentos especializados não sirvam, mas é que eles deixam buracos na sua visão de mundo, na sua situação no mundo e de como você se coloca no mundo. É isso aí, dando um certo salto, porque é uma transformação muito grande na maneira de pensar. Não cheguei de NY com essa visão, não é isso. Lá eu tomei um contato com ela, ela me chamou muita atenção e gerou em mim um certo fascínio porque durante muito tempo eu achava que não tinha nada assim novo. E acho que isso me deu a ideia de que essa redução disciplinar, por mais eficaz que ela possa ser, ela é feita e está a serviço de algo ou alguém. Ou seja, você não tem neutralidade no conhecimento.

Quando você faz um minicomputador ou um microcomputador, você faz isso em um ambiente, você faz isso com algo e com alguém e para algo e para alguém. A chance que você vai ter de continuar ou não fazendo isso, seja mini ou microcomputadores, isso você não consegue entender pela Engenharia Eletrônica e nem só a partir da Economia. Eu vislumbrei isso quando li o livro, especialmente o artigo do John Law, sem ter naquela época a clareza que eu tenho hoje disso que estou dizendo agora. E é justamente isso que eu acho que mais me atrai nos Estudos CTS. Porque com eles você tem essa ferramenta ou mesmo que seja só uma possibilidade, tem esse entendimento, essa proximidade da materialidade que aterriza uma explicação para o que é a tecnociência e escancara os limites das pretensas universalidades, neutralidade e objetividade de toda a ciência ocidental. Quer dizer, de praticamente tudo o que se ensina nas universidades brasileiras. No momento em que você tem a visão de que isso deixa buracos e de que isso está situado, nesse momento mesmo se apresenta a possibilidade de dignificar outros conhecimentos. Pode-se ensaiar uma espécie de revolução cultural. Então você tem conhecimentos no Brasil que certamente não são conhecimentos pra levar coisas ou pessoas à Lua ou a Marte, mas eles são conhecimentos – aí já usando os termos dos Estudos CTS – epistemologicamente dignificáveis. Não significa que eles vão imediatamente ter a mesma força política dos conhecimentos ocidentais, mas os conhecimentos ocidentais tampouco têm transcendência. Uma vez dignificados, as soluções que esses outros conhecimentos apresentam para os modos de existência podem ser mais facilmente aceitas e postas em prática.

Eu vou fazer uma caricatura para colocar de uma forma mais sintética as questões das opções de modos de existência. Assim, a ciência mostra que temos um problema de aumento do gás metanos na atmosfera. O gado, o boi e a vaca arrotam e eles arrotam metano. No Brasil e em outras partes do mundo também, temos um rebanho tão grande que isso começa a afetar as condições climáticas – o aumento da quantidade de metano que tem a ver com o aumento do buraco na camada de ozônio na atmosfera. Como se resolve esse problema? Uma abordagem estritamente científica, e já adianto que de jeito nenhum estou advogando o abandono das abordagens científicas, iria na direção técnica, dita universal, neutra e objetiva, de fazer um boi que não arrota, ou seja, modificar geneticamente o boi ou a comida do boi. Mas pode-se discutir outro caminho, o de se comer menos carne (que não seja a solução excludente de simplesmente subir o preço da carne de modo que só os ricos possam comer carne e o mercado regule o tamanho do rebanho). Em vez de investir em uma tecnologia de ponta pra modificar o boi, você tem uma outra maneira de existir e de tratar do problema, diminuindo a quantidade de metano que os bois colocam na atmosfera porque, por exemplo, se os moradores das grandes cidades não puderem comer carne, você vai diminuir a quantidade de bois. Hoje tem mais boi do que gente no Brasil. É claro que para o agronegócio isso seria horrível, mas fiz essa caricatura porque é um pouco assim: ao dignificar os conhecimentos locais, brasileiros, você abre outras maneiras de pensar, você se livra um pouco de que nas universidades “nós temos que fazer as tecnologias de ponta”. Não, olha um pouco pro lado. Podemos achar linhas de fuga.

Durante alguns anos, nos congressos da 4S6, organizei painéis que se chamavam linhas de fugas (lines of flights) e eles procuravam dar oportunidade de pessoas que apresentassem esse tipo de visão de que se pode ir em novas direções. Nos Estudos CTS, o surgimento e a criação de conhecimento é vista mais como rizoma do que como estrutura. Não quer dizer que você não possa fazer um boi que arrote menos e que essa não seja uma possível solução. Mas aqui, nesse momento e nesse lugar, pode ser que outra solução seja melhor ou que se use as duas. Ou seja, você não está preso a algo que é apresentado pelo Ocidente como universal, neutro e objetivo. E é claro que o Ocidente tem uma força enorme de colimar todos os conhecimentos em uma direção unidimensional (progresso). E aí você se afasta da complexidade, da visão de fluxo, e você se afasta das oportunidades e de pensadores preocupados com a população, com as pessoas, com o povo, como Paulo Freire, por exemplo. Você se afasta dele, porque ele já vai dizer “você pensa a partir do chão que pisa, o cérebro pensa a partir do chão onde pisa”. Frases desse tipo situam e dão força a você olhar a situação. E hoje isso é especialmente interessante porque talvez ... bem, primeiro, isso não vai mudar de repente, porque temos séculos de uma crença equivocada em universalidade, neutralidade e objetividade que deu à ciência ocidental um status quase transcendente. Mas pela primeira vez há séculos talvez tenhamos atores suficientemente poderosos no Oriente para contestar, para fazer frente e dizer ao Ocidente “ok, vocês fizeram um monte de coisas, boas e ruins, mas seus conhecimentos não são universais, tenham paciência.” E isso é uma revolução cultural.

Esses meus amigos que ficavam irritados de não ter um computador de última geração não se enxergam. Se você perguntar se eles são brasileiros eles vão dizer que sim, mas eles se veem como colonizadores. Eles aceitam isso e se veem como americanos ou como franceses ou como alemães. E eu não acho que um chinês se veja como um americano. Não sei nada sobre a China ou quase nada. Nem um japonês se vê como um americano. E os próprios estudos do Ocidente mostram isso, que eles já faziam coisas e inclusive coisas de cunho científico, embora isso não fosse chamado de ciência, antes da Europa e antes de existir ciência europeia. Talvez por influência da Igreja Católica, na Europa se acreditava até poucos séculos atrás que o céu era imutável. Mas antes da Europa os chineses já estavam lá registrando. “Não, aparece uma estrela aqui. Essa estrela apareceu agora, o céu muda”.

Então eu fico realmente fascinado com as possibilidades abertas pelas Estudos CTS. Estamos diante de uma oportunidade histórica. Os Estudos CTS abrem uma frente para uma descolonização do conhecimento. Isso é inédito em países como o Brasil, que sempre foi colonizado e subjugado pelo conhecimento, especialmente o conhecimento científico, que tem na sua própria elite a visão de ser colonizadora e “civilizatória”. Pode-se dizer que a construção do brasileiro escolarizado e todo o esforço de escolarização é nesse sentido, o de branqueamento ou europeização do negro e do índio, dos mestiços que são a maioria da população.

AALF/HC     Voltando então para sua trajetória que você estava narrando. Você estava na New School nesse momento da sua narrativa, e eu imagino que o teu projeto devia estar de alguma forma vinculado a explicar, talvez a você mesmo, em um primeiro momento, o que tinha sido a experiência da reserva de mercado e como tentar compreender aquela quebra e a decadência da reserva que você tinha caracterizado inicialmente como um sucesso. E há números e evidências para afirmar que é um sucesso. Então eu imagino que você deve ter escrito alguma coisa. E aí eu te pergunto: já era uma história CTS naquele momento ou ela ainda era embrionária pra você mesmo? E, do ponto de vista CTS, o que essa incorporação desse olhar CTS trouxe pra esse teu projeto naquele momento? Ou se não trouxe naquele momento e só veio acontecer quando você veio pro Brasil?

IdCM     Eu tentei escrever isso, sim. E acabei escrevendo um livro enorme, quase 400 páginas, e eu tentei publicar esse livro, que tinha como título “uma aproximação autônoma da modernidade”. Não consegui, recebi duas respostas com conselhos editoriais. Segui os conselhos e reduzi pra cerca de 250 páginas e submeti mais uma vez. Novamente não consegui. A resposta mais elaborada que recebi, lamentando a negativa, é que o livro tinha muita filosofia para que engenheiros comprassem e muita engenharia para que filósofos comprassem. Apesar dessa mistura posso dizer decididamente que o livro não era um texto CTS. Esse texto durante algum tempo ficou como uma espécie de baú, onde eu podia pegar coisas que eu tinha escrito sobre a reserva de mercado e refrescar a memória. Ele foi traduzido para o português, mas eu achei que a tradução ficou horrível. Não me reconheci ali. Aí parti para eu mesmo traduzir e efetivamente traduzi uma boa parte. Mas morri na praia nos últimos capítulos, porque aquilo já não era. O tempo tinha passado. Eu não estava mais naquele livro. Hoje não é aquilo que eu quero dizer de jeito nenhum. A minha própria localização no campo CTS se deu aos poucos e em grande parte depois que eu havia retornado ao Brasil, embora também decididamente eu tenha vindo de lá com a semente plantada. Tanto que logo na volta comecei a dar cursos na COPPE junto com o José Manoel. Foi muito estimulante ver que os Estudos CTS atraíam muitos alunos. O nome da disciplina que eu vim a dar por muitos anos, inclusive depois com o Henrique, era “Fatos e artefatos como construções sociotécnicas”. Aí os alunos choviam. Eu me lembro de duas ocasiões em que a gente teve que mudar de sala porque apareceu um número de alunos que não dava nem em pé na sala. Mas os primeiros anos foram especialmente difíceis porque embora os alunos viessem cursar a disciplina eles não escolhiam fazer teses e dissertações no campo CTS, optando pelos campos mais tradicionais da engenharia. Essa situação perdurou por alguns anos.

AALF/HC     Eu acho relevante. Nós estamos aí em ‘95. Foi um momento. Foi uma época em que estar interessado ou ligado ou vinculado de alguma forma ao CTS te deixava muito à margem da comunidade acadêmica. Pelo menos no caso da COPPE da UFRJ, você era meio um bandido da discussão sobre ciência e tecnologia, aqueles caras que discutem ciência, tecnologia, mas não acreditam na realidade. Então a gente tinha essa sensação de acuamento ou isolamento, embora a gente tivesse uma convicção e um ânimo e uma esperança de que a gente estava num caminho apropriado para discutir a questão da tecnociência no Brasil. Essa questão que você já tinha trazido lá de trás da reserva do mercado. Começou um processo de formação de comunidade, em que aqueles poucos crentes, entre aspas, do CTS, começaram a ter que se procurar e se juntar quase que como uma questão de sobrevivência acadêmica e pessoal, vamos dizer assim.

IdCM     Só um parêntese que me lembrou, Henrique, essa questão de ser o bandido, não acreditar na realidade. Isso é verdade até hoje. A semana passada eu participei de um FORTEC (Fórum Nacional de Gestores de Inovação e Transferência de Tecnologia), um fórum da Universidade de Rondonópolis. No primeiro dia foram convidados dois cientistas brasileiros de prestígio que falaram da ciência da forma a mais tradicional e mistificadora possível, defendendo a diferença entre ciência básica e ciência aplicada, e a necessidade de fazer ciência básica de ponta, a ciência universal. Foi assim um discurso realmente de décadas e atrás, e são pessoas que estão aí à frente.

AALF/HC     Ivan, queria que você falasse um pouco sobre as considerações sobre esse campo CTS por aqui, falando assim um pouco da dinâmica do campo nacional e regional ao longo dessa tua trajetória. Como é que houve ou não uma integração regional do campo e a relação das comunidades nacionais e regionais com as próprias redes internacionais, como as que você já veio em sua história já veio muito inserida nessa integração.

IdCM     Bem, começamos com a disciplina “Fatos e artefatos como construções sociotécnicas” na COPPE. John Law esteve por 15 dias no Rio e reunimos um grupo muito estudioso, com gente da UFF e da Fiocruz também, que discutiu com ele à exaustão o livro que ele ainda estava terminando, chamado Aircraft Stories.7 E aí por volta da virada do século vimos que nós tínhamos um pequeno grupo de Estudos CTS na UFRJ, com participantes da COPPE, do NCE, da pós em Psicologia e do então recém formado Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE). E a partir de 2002 começamos a nos reunir anualmente em um encontro que denominamos Ato-Rede. Esses encontros foram encontros também muito, muito ricos no começo, essa é a minha opinião, e tinham uma dinâmica muito própria. A ideia é que não tinha a hierarquia de professor, aluno, doutorado, sem doutorado, nenhuma hierarquia, e cada um podia falar três minutos de cada vez que falasse. Havia também questões que podiam ser escritas em uma lauda e distribuídas, preferencialmente antes do evento. Elas podiam servir de gatilhos para as discussões. É interessante que todos esses eventos estão gravados e disponíveis na internet. O primeiro encontro foi em Xerém, os seguintes em Teresópolis e depois em outros locais, quase sempre fora da cidade do Rio de Janeiro. Lembro que para um dos encontros em Teresópolis vieram outros grupos do Brasil afora interessados CTS, da UNICAMP, UFSC, UFRGS, de Itajubá. Nesses encontros surgiram também vinculações com pessoas de outras instituições. Assim, foi formado o grupo NECSO (Núcleo de Estudos de Ciência e Sociedade), inscrito no CNPq, que tem toda essa história registrada. O NECSO criou um espaço, uma certa comunidade que praticava e se juntava em torno dos estudos CTS. Em 2013, se não me engano, o grupo NECSO promoveu um encontro marcante para os Estudos CTS no Rio de Janeiro.8

Mais ou menos na época de criação do NECSO fui pela primeira vez a um Encontro Latino-Americano de Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia, denominado encontros ESOCITE, em Campinas. Ali eu vi que tinha um lugar que ressoava com o NECSO, que poderia abrigar os Estudos CTS na América Latina, que nós não estávamos tão sozinhos. Latour, John Law, Michel Callon e Anne Marie Mol não eram autores de muita circulação ali, mas circulavam outras abordagens de estudos sociais, frisa-se, de ciência e tecnologia. Era um espaço com alta predominância de sociólogos.

A parir do ESOCITE em Campinas procurei integrar-me na comunidade ESOCITE latino-americana. Fomos Henrique e eu ao congresso ESOCITE 2006 em Bogotá. Isso foi importante porque lá fomos convidados a organizar o ESOCITE 2008 no Rio de Janeiro e aceitamos. Esse foi o momento de nossa maior aproximação com o grupo que realizava os congressos ESOCITE. A cidade do Rio de Janeiro exerce uma atração grande para fazer as pessoas ficarem interessadas em vir para cá para um congresso. O ESOCITE 2008 RIO bombou. Aqui vale registar que só foi possível organizar o congresso da forma que foi organizado pela dedicação do Henrique Cukierman e o Eduardo Paiva. Nós queríamos fazer o ESOCITE 2008 RIO com o máximo possível de, digamos assim, práticas CTS incorporadas no próprio congresso. Então, o ESOCITE 2008 RIO não foi definido a partir de eixos, mas foi definido a partir de problemas, frases chaves, temas. Nós anunciamos que a participação no ESOCITE 2008 RIO começava seis meses antes do congresso. Convidamos todas as pessoas (sem hierarquia) que tivessem intenção de comparecer ao congresso a apresentar problemas descritos em uma frase. No final desse processo nós tínhamos 117 problemas ou temas. E esses problemas é que foram usados para compor os grupos que iam se encontrar durante o Congresso. Pedimos aos que se apresentaram para coordenar painéis (GTs) que indicassem dentre aqueles 117 problemas quais os que se sentiam aptos a coordenar. Assim foi feita a alocação dos grupos e distribuição nos horários. Então, nós nos afastamos bastante da organização tradicional dos congressos. Nós procuramos quebrar a organização tradicional e juntar as pessoas que tinham interesse nos mesmos problemas. Reunimos pessoas de instituições diferentes, de países diferentes, e muitas vezes essas pessoas se encontraram pela primeira vez na mesma sala num Congresso. Quer dizer, o Congresso fazia muita força para que elas saíssem de seus nichos disciplinares prévios, o que acontece comumente em congressos em que pessoas que se falam cotidianamente viajam para se reunirem com elas mesmas em uma sala a centenas de quilômetros de distância. É claro que essa organização demandou um esforço extra em madrugadas de trabalho para compor os grupos e horários. Mas considero um esforço amplamente compensado pelo resultado, pelo sucesso da inovação, pelo tanto de gente que achou muito legal.9

Mas, é claro, vi também gente que queria a organização tradicional, acho que principalmente os que organizavam os encontros ESOCITE tradicionalmente e, pelo menos nos anos seguintes, continuaram organizando. Tanto assim que abordagens conducentes a não organizar disciplinarmente os congressos ESOCITE, que seriam mais bem situadas, mais libertadoras e menos colonizadoras para os Estudos CTS na América Latina, acabaram não vingando. Sem dúvida, não se trata de banir o conhecimento disciplinar, mas até onde acompanhei os congressos ESOCITE, eles estão organizados por eixos de uma forma bem tradicional. E isso engendra sub-repticiamente, digamos assim, um agente colonizador.

Os congressos ESOCITE vinham acontecendo em diversas cidades da América Latina por obra de indivíduos que se dispunham a organizar os congressos. O que era um feito admirável, uma vez que não havia uma associação que desse, digamos, uma existencial institucional aos congressos ESOCITE. Para sanar esta situação ficou combinado em Bogotá que formaríamos associações em cada um de nossos países como primeiro passo para se instituir uma ESOCITE internacional, englobando todos os países da América Latina. Nós saímos de Bogotá com a ideia de formar a ESOCITE.BR e, na nossa expectativa, seriam formadas também a ESOCITE.MX, a ESOCITE.AR etc. Mas só em 2010, a assembleia de fundação da ESOCITE.BR aconteceu em Curitiba. E aí, uma vez fundada a ESOCITE.BR, nós fizemos um acordo com o Professor Gilson Queluz da UFTPR, para que a ESOCITE.BR dessa continuidade aos congressos sobre estudos sociais e ciência e tecnologia que vinham sendo feitos lá, denominados ... agora me escapou a palavra.

AALF/HC     TECSOC.

IdCM     Isso mesmo, haviam sido realizados quatro congressos TECSOC. Combinamos uma transição gradual de TECSOC para ESOCITE.BR O nome do quinto congresso apareceu como TECSOC bem grande e ESOCITE.BR pequenininho, no sexto apareceram os dois nomes do mesmo tamanho. No sétimo apareceu no ESOCITE.BR bem grande e TECSOC pequenininho, e do oitavo em diante só apareceu ESOCITE BR, conforme tinha sido combinado com o Queluz. E a ESOCITE.BR foi se consolidando ao longo do tempo, o registro em cartório, a obtenção de alvará, a conta bancária, as certidões negativas, as declarações junto ao fisco etc. E os congressos do ESOCITE BR tem acontecido, acho que com sucesso, e tem também aumentado, dentro dessa comunidade de estudos sociais e ciência e tecnologia, a abordagem que a gente poderia resumir visando como sendo a abordagem da chamada teoria ator-rede. A teoria ator-rede indica linhas de fuga que podem conduzir à dignificação de conhecimentos locais. Nessa frente temos muitos aliados, mesmo que não frequentem a ESOCITE.BR ou só frequentem quando convidados. O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro fez conferências em congressos da ESOCITE.BR trazendo sua inestimável contribuição para a dignificação dos conhecimentos dos povos ameríndios. Boaventura de Sousa Santos denuncia o epistemicídio dos conhecimentos fora da moldura epistemológica euro-americana, só para ficar em dois exemplos. E eles são cada vez mais citados na produção da comunidade ESOCITE.BR. Temos também, é claro, aliados no mundo euro-americano. Então, tem havido aqui no Brasil um aumento do número de pessoas cujos pensamentos se vinculam a essa abordagem ator-rede e que, felizmente, já começam a brotar dissertações, teses e outros aportes locais. Eu acho que nós estamos assim, diante de uma oportunidade, se me permitem um sonho, histórico-filosófica de deixarmos de ser existencialmente atrelados à Europa, somente aplicando e replicando tudo o que que vem de lá. Embora, é claro, não seja nem possível e nem desejável abandonar toda a herança euro-americana, não se trata disso.

Se você quiser um exemplo de atrelamento existencial é só você abrir um jornal. A inovação do carro elétrico. Teve percurso até agora alguma reflexão / discussão autônoma sobre como situar o que vem chegando sobre políticas públicas para o carro elétrico no Brasil? Posso estar enganado, mas creio que nenhuma. As empresas vão chegar aqui, vão vender carros elétricos, as distribuidoras de energia vão botar tomadas em postos de gasolina e pronto. Não se especula sobre as diferenças entre o Brasil e os lugares onde as políticas públicas ditam que deixar o mercado se provará, mais cedo ou mais tarde, a melhor solução. Mas os efeitos das soluções do mercado são diferentes na metrópole e na colônia. E o fato de no Brasil termos a participação do álcool como combustível não se relaciona com as possíveis vantagens e desvantagens ecológicas do carro elétrico? O carro elétrico não tem nada a ver com possíveis oportunidades de novas conceituações para o transporte público? Não se ouve falar do carro elétrico como uma oportunidade de exercer autonomia. Então, um dos problemas da nossa colonialidade é que normalmente os nossos gestores, as pessoas que têm mais influência em política pública, que estão na burocracia, ainda estão muito distantes dos Estudos CTS, mas, se você quiser ser otimista, elas estão começando a ouvir. Por exemplo, nas políticas públicas brasileiras, você encontra(va) programas de assistência tipo o programa Minha Casa, Minha Vida em que se pode notar pelo menos um começo de dignificação do conhecimento de quem recebe o benefício.

Mas na maior parte dos casos, a política pública e o programa de benefícios são feitos a partir da visão existencial do burocrata – burocrata aqui não tem sentido pejorativo, em resumo, refiro-me à burocracia como uma necessidade do Estado moderno – a visão de alguém cujo cotidiano é normalmente muito distante do cotidiano do beneficiário. Quem recebe o benefício não é ouvido porque o gestor, quem decide o destino, pensa já conhecer a vida do beneficiário, pensa já saber o que é melhor para aquele “outro”. O que é que os Estudos CTS vão dizer a respeito disso? Bem, eu acho que pelo menos uma parte deles já diz que isso não é possível e que esse abismo deve ser aterrado, que essa arrogância escolarizada, esse epistemicídio deve ser tão abolido quanto a escravidão. Os Estudos CTS vão procurar mostrar que aquele beneficiário sempre sabe alguma coisa e ele até pode saber muito mais do que o burocrata escolarizado a respeito de muitas coisas da vida dele, e que então ele tem que ser ouvido. Isso começa a ressoar, a ter uma presença se você for otimista. Isso aí seria uma oportunidade de a gente abrir linhas de fuga da colonialidade. Se não, nossos bisnetos vão aprender mandarim em vez de aprender inglês. Se não, se não cairmos ainda mais na barbárie, muito provavelmente nós vamos ter só novas metrópoles, agora provavelmente orientais. Não é verdade que nosso eixo metropolitano antes apontou para Lisboa, em seguida para Paris, Londres, Berlin e depois para Nova Iorque? Agora se apresenta uma mudança de metrópole talvez mais radical, mas também mais radical é a oportunidade de descolonização. Sei que estou especulando. Mas, novamente, estou me referindo uma oportunidade inacabada. Quer dizer, já que tem alguém que é capaz, tem cacife, tem poder econômico e político para se contrapor e dizer que os conhecimentos do Ocidente certamente têm efeitos, mas que as molduras ocidentais, inclusive as científicas, não são nem universais, nem neutras, nem objetivas, mas sim inseparáveis dos modos de existência ocidentais; já que tem alguém que é capaz de dizer isso ao Ocidente, e portanto de certa forma o fragilizou, nós, nesta periferia colonizada do Ocidente, podemos ver aí uma oportunidade para descolonizações. Vamos nós mesmos situar nossos problemas e nossas soluções, vamos construir nossos conhecimentos e nossas próprias ferramentas cognitivas? Isso se aplica a carro elétrico, a rede de distribuição de energia, a merenda escolar, a sistemas sanitários, a sistemas de transporte, a etc. e, acima de tudo a nossa educação, ou melhor ainda, a nossas educações.

Se você vier fechado naquele edifício de conhecimento ocidental, naquele mimetismo das nossas metrópoles, a gente já sabe, tem 500 anos de imitação, aplicação e de grande fracasso em prover dignidade para a maioria da população que habita o Brasil. Esse modo de viver e conhecer é excludente. Não tem espaço pra todo mundo nesse modo de existência e, quando sobra, sobra um espaço indigno para a grande maioria. A promessa dos estudos sociais e ciência e tecnologia, eu acho que é muito grande, porque o fazer científico, ele, ele faz parte disso, mas nunca tinha sido estudado. O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro tem uma frase que põe o dedo nessa ferida. Ele se refere à Santíssima Trindade Moderna: o Pai Estado, o Filho Mercado, e o Espírito Santo Ciência. A ciência não fez uma parte inocente, transcendente e idealista do processo colonizador. Isso é uma ilusão. Pode ser que dentre os que fazem ciência, alguns ainda acreditem nisso. Se você quiser ser benevolente, você pode dizer até que os cientistas acreditam nisso porque têm uma crença … caem no mito com aquela ingenuidade bem-intencionada de quem acredita que trabalha com a Verdade, com V maiúsculo. Boaventura de Sousa Santos diz com razão que o problema é o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. Mas a história da ciência mostra que esses três actantes são aliados históricos da Ciência. Se você olha, a ciência agora tem toda uma produção feminista crítica das relações da ciência com o patriarcado. A ciência até bem pouco tempo era coisa exclusivamente de homem. Ethos científico. Então quero dizer que tem muito, muito pano pra manga e muita, muita coisa para ser feita.

AALF/HC     Indo nessa direção, das oportunidades que se abrem num país como o nosso, numa região como a nossa América do Sul, América Latina. Como é que você vê o engajamento dessa comunidade de cientistas brasileiros? Falar dos cientistas brasileiros que a gente está mais perto e conhece mais com essas possibilidades ou, digamos, essas promessas dos estudos CTS que oferecem ao país ou mesmo assim, a essa vontade de autonomia acadêmica, intelectual, tecnológica, o quão essa vontade de autonomia é abraçada por nossa comunidade acadêmica, ou seja, as relações da comunidade CTS, que é uma comunidade pequena com o restante da comunidade acadêmica brasileira. Então a pergunta é essa, como é que você vê dentro desse tópico geral da agenda de investigação em políticas públicas, a capacidade que essa comunidade brasileira tem de intervir neste nível?

IdCM     É uma ótima pergunta. Como parte preambular da resposta recordo que na época da reserva de mercado, quem fazia aqueles protótipos não era a maioria na universidade e sequer a maioria das engenharias e da computação nas universidades. Tanto era assim que, uma vez desfeita a proposta de criar tecnologia local, predominou até hoje como orientação na ciência da computação no Brasil uma orientação teórica importada e completamente afastada daquela proposta. Então eu falei aqui das universidades, mas realmente, se eu tivesse sido mais preciso, teria falado da condição de pequenos grupos nas universidades, em escala comparável ao que temos nos Estudos CTS nas universidades hoje. Eram pequenos grupos que pegavam o terminal da Burroughs e ligava no computador da IBM, botava a boca no trombone explicando e anunciando essa façanha técnica, e participava dos congressos da SUCESSU com dificuldade vindo lá não sei de onde, pegando uma carona no estande do SERPRO (Serviço Federal de Processamento de Dados). Tinha uma militância, mas era uma minoria, era sem dúvida uma minoria.

Mas, feita essa observação, a comunidade acadêmica brasileira em geral chega a me chocar. Não tanto pelo conservadorismo, pois já sabemos que o Brasil é mesmo assim, um país onde aqueles que têm capacidade de se apropriar do excedente, e certamente a academia está ou estamos entre eles, somos, por assim dizer, institivamente conservadores. Talvez o que me choque mais seja esse parente próximo do conservadorismo que é o conformismo. A pós-graduação experimenta, já há algumas décadas, não tão novas regras na avaliação da CAPES. Essas regras determinam a atribuição de notas aos programas de pós-graduação e a distribuição de recursos. Em suma, dão as direções da pesquisa científica no Brasil. É sabido e acho que poucos discordariam que essas regras são muito criticadas em conversas privadas. Elas reproduzem hierarquias e desigualdades. Mas publicamente a atitude prevalecente é a das pessoas optarem por não questionar as regras. Não questionar a CAPES faz prevalecer na pós-graduação aquele conformismo no sentido de olhar uma estrutura unicamente a partir do ponto de vista de como construir um espaço de conforto nessa estrutura. Não que buscar um espaço de conforto seja ilegítimo, mas esse conformismo fez com que a vida profissional universitária seja reduzida ao individualismo produtivista. Esse individualismo decorre de concepções importadas e o individualismo tem efeitos diferentes no centro e na periferia. Se meu sucesso depende de publicar em revistas estrangeiras em inglês, aqui essa passa a ser a razão de ser da minha vida acadêmica.

Ao mesmo tempo que se faz isso individualmente, até se poderia coletivamente questionar essas regras e procurar modificá-las. Mas essa não é, normalmente, a atitude coletiva. A atitude é de um extremo conformismo. “As regras estão aí”, diz a maior parte dos coordenadores de pós-graduação. Não interessa de onde elas vieram. Então eu vou me adaptar e vou aplicar as regras para melhorar ou manter a nota do meu programa. E não estou disposto a gastar energia assim, investindo em possibilidades de modificar essa estrutura, modificar essas regras. Quer dizer, ela é realmente uma comunidade extremamente conformista, além de conservadora. Agora, eu assim numa visão otimista. Eu acho que vão surgir forças para enfrentar a irrelevância arrogante dessas pessoas. Quis assinalar no preâmbulo dessa resposta que os processos não são lineares e as proporções dos efeitos menos ainda. Eu ouvi uma declaração recente, dessa semana, do Lula dizendo que as universidades tinham –mais ou menos isso não lembro as palavras exatas, mas está nos jornais– que sair do castelo e não mais produzir para elas próprias. Elas têm que produzir coisas que beneficiem o povo. É mais ou menos o que o Lula colocou.

AALF/HC     Centros de luxo, né, não pode ser um centro de luxo para produzir para ela própria.

IdCM     Centros de luxo é exatamente alguns redutos nelas são, com risco de alguma injustiça. Uma crítica pertinente que se faz aos empresários brasileiros é que a única coisa que eles sabem pedir é menos imposto. Mas se você observar bem, A única coisa que corporações de cientistas brasileiros sabem pedir é mais dinheiro, cometendo novamente uma ou outra injustiça. Agora tendo certeza de estar sendo injusto com alguns, além de se autoelogiarem e de mitificar a ciência com promessas que não são eles que realizarão, o que os cientistas brasileiros nessas instituições dizem é que precisam de mais dinheiro. Assim como os empresários só dizem “nós precisamos de menos impostos”, os cientistas brasileiros só dizem “o problema é que nós não temos dinheiro”. Não é bem assim, ou pelo menos não é só esse o problema. Dinheiro faz parte de um conjunto de coisas e dinheiro para se fazer ciência não é desprezível, mas não é tudo, e não é que não se possa fazer coisas com o dinheiro que já se tem. Assim é que eu tenho assim uma visão otimista de que, eventualmente, surgirão forças para mudar essa situação.

Eu chamei a atenção para essa declaração do Lula, porque eu acho que com essa declaração ele perde votos nas universidades. Eu não sei o quanto isso é um sentimento pessoal dele. Pela minha impressão, este sentimento não está muito disseminado no PT. Parece-me que o PT abraça bastante conservadoramente a Ciência, no singular com C maiúsculo – uma ideia de ciência que resistiu bem até meados do século XX mas não depois. Eu nem sei o que e o quanto o Lula queria dizer exatamente com isso. Mas ele foi numa direção que aponta um problema que facilmente pode passar e ser visto, assim tipo “o rei está nu”. Basta acontecer da mídia circular isso – a pós-graduação trabalha muito para si própria – para colocar as universidades numa situação muito vulnerável. É uma discussão perigosa pois seria muito ingênuo acreditar que todos que chegariam a ela viriam carregados de boas intenções. Eu acho difícil a universidade reconhecer isso, mas eu acho que não adianta tentar tapar o sol com a peneira, é melhor reconhecer que é chegado o momento da DR, da discussão da relação das universidades com os povos brasileiros.

Até porque elas apanharam muito e se mostraram incapazes de se defender do bolsonarismo, É claro que eu não vou defender aqui que não se dê dinheiro para as universidades. Ponto. Mas, sim, sou contra dar dinheiro para as pós-graduações produzirem papers que não são lidos, mirando, geralmente sem alcançar, as chamadas pesquisas de ponta nos problemas das universidades e centros americanos ou europeus, que influenciam os currículos e que vêm aqui, dão conferências pagas com nosso dinheiro para dizer quais são os problemas em que devemos trabalhar. E temos uma política pública que diz que é isso mesmo que temos que fazer para ter boas notas!

Novamente, pelos Estudos CTS já sabemos que isso vai dar ruim. Foram os estudos de laboratório feitos nos EUA nas décadas de 1970/80 que revelaram ao mundo que se você vai no laboratório e observa como um conhecimento científico é feito, você facilmente vê que nas discussões surgem problemas que estão muito fora do laboratório, que dependem de inúmeras questões que transbordam as fronteiras do laboratório. O cientista no laboratório leva adiante uma competição combinando inscrições, inscrições que ele vai obtendo seja utilizando o mesmo equipamento repetindo medidas com os mesmos insumos seja usando novos insumos. Mas ocasionalmente ele precisa de um novo equipamento para fazer novas inscrições e ele precisa discutir esse novo equipamento. Ele precisa projetar esse novo equipamento e ele não pode fazer isso sozinho. Uma capacidade industrial tem que estar ao alcance dele para ser parceira nessa tarefa. Normalmente o cientista brasileiro não tem essas inúmeras condições, essas redes de pesquisa aqui, e esse ponto é crucial. Como ele também não tem muitas outras condições de continuidade, de acesso, de parceria. Então, é claro que estou generalizando e não é que não se possa competir com as metrópoles em fazer pesquisa internacional. Mas a maior parte dessas competições, se é que chegam a ser seriamente instaladas, estão fadadas ao fracasso. O que é anunciado como sucesso, digamos assim, aparece mais facilmente com o cientista brasileiro desempenhando um papel coadjuvante numa pesquisa internacional com centro na metrópole. Então você ter uma política pública de financiamento que aloca a parte do leão para esses arremedos mimetistas é jogar fora um bom dinheiro, ou que não seja um bom dinheiro, que seja um pouquinho de dinheiro, mas é o dinheiro que você tem para fazer pesquisa. Isso não vai ter resultado, novamente com alguma preocupação de ser injusto num caso ou noutro pois há sempre as exceções que conseguem de um jeito ou de outro. Em suas demandas os cientistas brasileiros acham que qualquer política de construção de conhecimento vai mexer com a liberdade dele fazer a pesquisa e interferir com o mitificado progresso científico. Só que esse sagrado progresso científico não é o cientista brasileiro que faz. Cada vez mais o rei desfila nu. Ele se enrola na bandeira do progresso científico, mas não é ele que faz esse progresso científico. Esse progresso científico é feito fora daqui. O que normalmente temos aqui são pessoas que sabem falar com quem faz o progresso científico. É um conhecimento de leitura, livresco, e realmente eu acho que isso predomina, infelizmente. Pelo lado otimista, eu espero que isso mude e me dá esperança assim, ver que talvez uma parte da burocracia venha percebendo isso. Então eu acho que as cobranças que virão sobre as universidades serão mais uma vez muito grandes mesmo, e espero que desta vez elas se preparem para descer dos centros de luxo pobre e venham produzir para os povos brasileiros, a melhor maneira de produzirem também para si próprias.

Eu acho que eu falei à beça. Eu acho que eu deixei muita coisa de fora também, porque estou beirando os 80 anos e concentrei muito da minha vida, não me arrependo de jeito nenhum, ao redor dessas questões. Pretendo continuar nelas e sonho continuar vivendo muito tempo, que nem o Darcy Ribeiro que ousou dizer “eu não vou morrer”. Resta ver como é que isso pode ser aproveitado. Tomara que sirva para alguma coisa. Mas neste momento isso não importa tanto. Eu quero mesmo é finalizar dizendo que foi mesmo muito, muito legal fazer essa conversa com vocês, foi um encontro que me deixou muito solto, meus amigos mais que queridos.

AALF/HC     Pra mim é sempre uma alegria te ouvir, é sempre um ensinamento, sempre aprendo. Isso eu cansei de falar, estou sempre aprendendo contigo. Então acho que podemos parar por aqui.

NOTAS DE RODAPÉ

  • arrow_upward1 da Costa Marques, I. (1974). Computação na UFRJ: uma perspectiva. CAPRE - Boletim Informativo, v. 2, n. 2, 21-28.
  • arrow_upward2 César, C., Faller, N., Granja, E., da Costa Marques, I., Martins, M., Paz, E., Menezes, A., Salenbauch, P., Santos, L., Schmitz, E., Takano, D. (1973). Processador de Ponto Flutuante para o Sistema IBM-1130. VI Congresso Nacional de Processamento de Dados-SUCESU, Rio de Janeiro, Brasil.
  • arrow_upward3 Esclarecendo, a CAPRE (Coordenação para o Aperfeiçoamento do Processamento Eletrônico de Dados) havia sido criada para outras funções. Seu contato com as universidades havia se dado através de um programa de alocação de computadores para as universidades brasileiras. Ela desenvolvia também programas de treinamento para empresas.
  • arrow_upward4 Evans, P. (2004). Autonomia e Parceria: Estados e Transformação Industrial. Editora UFRJ.
  • arrow_upward5 Bijker, W. E., Hughes, T. P., Pinch, T. J. (1987). The Social Construction of Technological Systems: New Directions in the Sociology and History of Technology. The MIT Press.
  • arrow_upward6 Society for Social Studies of Science (4S).
  • arrow_upward7 Law, J. (2002). Aircraft Stories: Decentering the Object in Technoscience. Duke University Press.
  • arrow_upward8 Araújo, J. F. M., de Melo Valente, C. (orgs.). (2014). Ator-Rede e além ... no Brasil: As teorias que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá?. EDUEPB.
  • arrow_upward9 Uma página do ESOCITE 2008 RIO pode ser acessada em http://www.necso.ufrj.br/esocite2008/